Conto: Mil Noites no Inferno.
Autor(a:): Desconhecido.
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Mil Noites no Inferno
Diego
despertara com o corpo todo suado. - Que pesadelo estranho. – Ele pensou.
Sentiu todos os músculos de seu corpo doloridos. Mal conseguia abrir os olhos
devido ao intenso clarão do sol matinal. Permaneceu alguns minutos mais, deitado
a fim de repor as energias estranhamente não repostas após a longa noite de
sono. Quando o torpor do despertar vai deixando-o,
mesmo sem abrir os olhos, Diego reflete sobre os fatos em sua volta. Estranha
os raios de sol clarear diretamente a sua cama. - Será que a Joana abriu a
janela do quarto? – Ele pensa - Ela sabe que eu odeio que abra a janela
enquanto ainda estou dormindo. Também estranha o leve balanço que a própria
cama fazia de um lado a outro, o deixando nauseado.
Lentamente, ele forçou
seus olhos a abrirem, deixando que a íris se acostumasse com o fulgor que lhe
penetrava cegando a visão. Quando enfim conseguiu enxergar entre a luz
incandescente que adentrava a janela, percebe que despertara n’uma rede feita
de retalhos de couro. Uma rede aparentemente normal. Se não fosse o odor
insuportável de carne putrefata, o líquido viscoso que escorria demasiadamente
entre as costuras e por os pelos ainda eriços, como se o couro costurado
tivesse sido arrancado de seu dono, algum animal selvagem, há algumas horas.
Conferindo o seu
pijama, preocupado por tê-lo sujo com o suposto sangue. Nota que suas vestes
não só estavam completamente lambuzadas com aquele líquido vermelho escuro e
pegajoso, como o seu pijama, com qual dormia todas as noites, não mais existia.
Diego despertou vestindo pedaços do que outrora poderia ser chamado de smoking.
Seu traje de gala favorito estava todo rasgado. As calças rotas se assemelhavam
a bermuda usada por fedelhos pré-adolescentes, enquanto na parte superior,
carregava um trapo que mal lhe cobria as costas e os braços.
Diego, com os olhos já
acostumados com a luz ambiente, gira o pescoço pelo quarto. Não! Não estava em
seu quarto. Viu-se no interior de uma choupana velha e aparentemente
abandonada. Havia dezenas de vasos cerâmicos quebrados por todos os lados. Uma
mesa de madeira corroída pelo tempo e estaria vazia se não fossem as teias de
aranha que não só cobriam a mesa, mas tudo que se encontrava naquele pequeno
antro dos diabos. Fazia um calor infernal.
Mesmo estando deveras
atordoado com o novo mundo que lhe rodeava, Diego levantou da rede com um
salto. Sua cabeça girou, nauseado, confuso. Tentava compreender o que lhe
estava acontecendo, como ele tinha ido parar naquele local. Nada fazia sentido.
Ele sentia sede. Muita sede. Seus olhos percorreram o local à procura de um
vaso inteiro. Ele encontra apenas um. Sua garganta estava em chamas. Mais do
que depressa ele se apodera do vaso e o chacoalha perto de seu ouvido. Sim.
Havia líquido em seu interior, porém o odor que emanava desse líquido era
horrível. Virou o artefato a fim de derramar um pouco do líquido no chão.
Sentiu o estomago embrulhar ao ver escorrendo aos seus pés o mesmo líquido
vermelho e viscoso que se encontrava na rede que acordara e por todo seu corpo.
Não havia mais dúvidas. Tratava-se de sangue. Fétido e viscoso sangue. Diego
atira o vaso contra a parede, espatifando-o em dezenas de pedaços.
Nota que entre a
vermelhidão asquerosa que se formou no solo de areia, continha alguns caroços
esféricos que não se desmancharam com o impacto. Com um galho de arvore em
mãos, remexeu cuidadosamente uma das esferas para livrá-la de toda gosma que
lhe cobria. Um horror imensurável lhe invade a alma causando-lhe tamanha ânsia
que Diego vomita ao descobrir que o escopo de sua curiosidade se tratava de um
olho. Um olho humano! Oito ao todo. Recorda-se de sua mulher e filhos.
Desesperadamente corre para fora da choupana a fim de procurá-los.
Deparou-se com um céu
em chamas. Jactos de luzes alaranjadas cortavam um céu vermelho escarlate. Raios
explodiam no firmamento em um espetáculo de cores tão belo quanto torturante.
Sentiu sua pele arder como se estivesse sendo consumido vivo por um fogo
invisível. Seus pés descalços tornavam em carne viva, a cada passo dado numa
areia escaldante como lava. Ele não suportou. Seus joelhos se dobraram e Diego
chorou. Chorou feito criança. Chorou por ver que areia e céu, o branco e o
vermelho, se uniam num horizonte tão distante que mal seus olhos conseguiam
enxergar, e até lá, tanto céu quanto areia exalavam um calor que só poderia vir
da parte mais quente do inferno.
Aqueles olhos não lhe
saiam da cabeça. Rastejando e ainda em lágrimas ele seguiu em frente, em
direção ao horizonte infinito. Encontrava forças na lembrança de sua esposa e
seus três filhos. Precisava encontrá-los para ter certeza que aqueles olhos não
eram o que pareciam. Não eram os olhos de sua família... Após percorrer de
joelhos algumas centenas de metros que mais se assemelhavam com quilômetros,
Diego avistou ao longe algumas árvores adustas, completamente desprovidas de
folhas e frutos. Tinham os galhos negrumes entrelaçados entre si, formando uma
escultura natural assustadoramente bizarra. - Nas sombras. Eles estão nas
sombras daquelas árvores. Estão se escondendo desse calor maldito. Estão nas
sombras... – Ele pensou.
Ele rastejava. Suor
vertia em seu rosto mesclando-se com as lágrimas que de seus olhos rolavam
incessantemente. Chorava pela dor imensurável que sentia por todo seu corpo.
Vermelhidão e queimaduras de primeiro e segundo grau se espalhavam por sua
pele. Bolhas d’água surgiam em suas mãos e joelhos devido ao contato direto com
a areia e este mesmo contato as vazavam provocando ardências e mais lágrimas.
Chorava por não saber o motivo desse pesadelo terrivelmente verossímil. E pelo
medo de que o desconhecido paradeiro de sua família seja tão ou mais trágico
que sua própria situação. Ele rastejava... - Aqueles olhos... Nas sombras. Eles
estão nas sombras...
Diego precisava seguir
em frente, mesmo a vertigem e os lapsos de lucidez já lhe causando descrença
sobre as informações obtidas de seus próprios olhos. Duvidara na veracidade das
imagens que sua visão lhe exibia. E o calor exalando do solo distorcia a
paisagem, corroborando com a condição entorpecida de Diego, davam às árvores
esboços de miragem. Mas ele seguia em frente. Diego precisava seguir em frente.
Com o corpo castigado
pelo sol, ele alcançou as árvores... Árvores sem sombras. Em desespero, se deu
conta que a luz não irradiava de um ponto único no céu, o sol, e sim, do céu ao
todo. Eliminando a possibilidade de haver sombras sobre aquelas árvores negras
ou em qualquer outro ponto daquele inferno branco. Nem mesmo na cabana onde
despertara, com enorme porta e janela, lá também a luz adentrava forte,
iluminando praticamente todos os cantos da choupana, e Diego sabia que sua
família não estava naquele lugar. Não era para onde deveria seguir.
Ele gritava, sem obter
resposta, pelos nomes de seus filhos e esposa. Gritava com as poucas forças que
ainda restavam em seus pulmões. O calor demasiado escasseava o oxigênio e Diego
já respirava com dificuldade. Ele sentou-se encostado nas gigantescas raízes de
uma das medonhas árvores. Tentou se lembrar da noite anterior. Recordou-se de
ter chego à sua casa, acompanhado de sua bela esposa. Chegavam de uma festa
havaiana. Recordou-se da festa. Ele havia bebido além de seu limite. Dançou com
várias dançarinas contratadas para animar o evento. Perfeitas profissionais,
juravam de pés juntos que eram realmente havaianas. - Se fosse uma festa do dia
das bruxas, elas jurariam que iriam embora montadas em vassouras.- Ele pensou.
Em certo ponto, suas
lembranças se tornam enevoadas. Com falhas, recordou-se de uma discussão com
sua esposa por causa de seu atrevimento com as dançarinas. Foi muito além de
uma simples discussão. Lembrou-se de terem perdido a cabeça e de Joana lhe dando
um tapa. Por puro reflexo, ele também a esbofeteou, e um garçom vestindo trajes
havaianos tentou segurá-lo. Porém, Diego, tomado de uma fúria incontrolável, o
golpeou com um soco no rosto e teria espancado o pobre garçom, não fosse os
seguranças chegarem às pressas o imobilizando com os braços nas costas.
Recordou-se que o rapaz
agredido pegou do chão a bandeja que servia os convidados e deixara cair quando
tudo começou. Lembrou-se também do garçom, antes de se afastar, olhando em seus
olhos e sussurrando algumas palavras incompreensíveis por Diego. - Libo gabi sa
ang impiyerno. Aquelas palavras. Diego, quando as ouviu pensou se tratar de uma
ofensa qualquer. Mas, em suas lembranças, as palavras sussurradas ganharam
sentido. - Libo gabi sa ang impiyerno. - Mil noites no inferno. Foi isso que
aquele maldito disse. Mil noites no inferno. Será que estou no inferno? É
loucura! Mas esse calor, o céu insólito, essa sede me corroendo e... Nem sinal
de água. Se este lugar não for o inferno... Suas reflexões sobre sua atual
situação foram repentinamente cortadas, quando Diego ouviu vindo de suas costas
o som inconfundível das águas do mar.
Seu tormento o
impediram de perceber tal som antes. O som do mar. Tomado de súbita esperança e
ânimo, ele levantou-se e correu tropegamente em direção à origem do som. Ainda
à distância seus olhos confirmaram a descoberta. Era mesmo o mar. Diego, à
medida que se aproximava, notava que as águas possuíam tons vermelhos. - É só o
reflexo deste céu infernal. - Ele pensou. Sentia como se carregasse o mundo
sobre os ombros. Com se todas as forças da natureza empurrassem seu corpo
contra o solo. Mas ele resistiu e alcançou à margem. E na margem, caiu
novamente em prantos.
Não se tratava do
reflexo do céu. As águas realmente eram vermelhas, e seu odor insuportável não
deixara dúvidas. Era um mar de sangue. Olhou para os dois lados e em ambos,
areia e mar, se ladeavam até findarem no horizonte. Angústia e desespero se
uniram no âmago desse homem. De joelhos fincados na areia, lágrimas vertiam de
seus olhos como chuva torrencial. Abriu os braços e atirou o corpo para trás,
como num ato de entrega. Entregava-se ao seu destino, ao seu fim.
Fitou o céu, e desta
vez com fúria, repetiu aos berros, com toda a força que ainda lhe restara nos
pulmões, a pergunta que não se calava em sua cabeça: - Por quê? Diz-me! Por
quê? Maldito... - Diego... – Ele ouviu. - Diego... – A voz sibilante chamando
por seu nome vinha da direção do mar sangrento. - Diego... Com o uso de uma
força além de seu limite, ele se levantou. Com dificuldade mantinha seu corpo
semierétil. - Diego... Fixou sua vista no rubro mar, mas com a alta densidade
daquele líquido podre, era impossível enxergar quem quer que fosse que
estivesse lhe chamando. - Diego... - A vozes continuavam a lhe chamar repetidas
vezes. Eram vozes. Diferentes vozes, vindas de diversas direções do oceano
pútrido. - Diego...
Fixou com mais afinco
seu olhar no mar. Notou com surpresa, o vermelho sujo e fétido, lentamente se
limpando, tornando-se água cristalina. Vultos surgiram dentre as águas tão
límpidas quanto água potável. Os vultos ganharam formas. Eram pessoas, dezenas
delas, o chamando, sibilando seu nome. Algumas lhe acenavam com os braços
estendidos. O chamavam. Diego olha diretamente no rosto de várias delas. Homens
e mulheres. Crianças e idosos. Alguns carregavam no olhar pesado, tanta
melancolia, tanta tristeza, que de súbito, Diego, ignorou a imensurável sede
que ainda lhe corroia a garganta e retrocedera alguns passos ensaiando um
afastamento, mas parou.
Outras, muitas outras,
daquelas pessoas sorriam. Os olhos brilhavam, irradiavam alegria contagiante.
Os braços estendidos o convidavam para um abraço, num gesto de hospitalidade
irrecusável. Diego se jogou em direção às águas. Ignorando por completo os
fatos insólitos e de modo sôfrego começou a beber aquele líquido como se
quisesse sorver toda a água, que agora lhe banhava até a linha da cintura, num
único gole. Iniciou levando o líquido, com as mãos em formato de concha, até a
boca, não demorou e mergulhou o rosto no mar. Sua sede parecia insaciável.
Quanto mais ele bebia, mais queria beber. - Diego... As vozes não silenciavam.
Mas naquele momento, ele as ignorava. Precisava de água. Sentia sede. Muita
sede. E a cada gole mais a sede aumentava. A água deslizava por sua garganta
como se bebesse licor dos deuses. - Dieg... - Repentinamente, as vozes
cessaram.
Diego sente
simultaneamente o terrível odor de podridão lhe invadir as narinas causando-lhe
imenso torpor e, um gosto preencher sua boca e garganta de um líquido viscoso e
pútrido. Abriu seus olhos com extremo pavor para constatar que a água em que
tão sofregamente sorvia havia se sanguificado novamente. Náuseas, horror,
desespero. Em vômitos e totalmente fora de si, ele se apressou para sair das
águas rubras e fétidas daquele insólito mar. A passos Trôpegos, cambaleava,
caia e levantava. Vomitando a cada novo passo. Com o rosto e corpo todo
maculado de sangue, Diego se afasta do mar, volvendo em direção às arvores
negras.
Jogou-se, deitado de
braços abertos, aos pés delas. Tinha os lábios trincados e secos, o corpo todo
ardia com queimaduras e bolhas, sua sede lhe corroia a garganta, sua respiração
estava fraca e seus olhos inchados jorravam lágrimas sofridas. Seu olhar fitava
o céu incandescente, mas já não possuía forças para questionamentos. Seus olhos
tentavam entender, seu corpo já havia se entregado. De repente, ele avistou nos
sinistros galhos das árvores, quatro corpos dependurados, enforcados. Corpos
sem olhos, as orbitas vazias o fitavam nos olhos. Sua mulher e seus três
filhos... Mortos. - NÃÃÃÃÃÃÃOOOOO!!!
O grito explode em
desespero de sua garganta, ecoando por todo o manicômio. Rapidamente uma
enfermeira adentra ao quarto, seguida por outros dois enormes enfermeiros. Os
homens o seguram com força enquanto a jovem lhe aplica uma injeção em seu
braço. Diego sente seu corpo pesar. Suas pálpebras vão se fechando abnegando a
sua vontade de manter-se acordado. Um sono de proporção indizível lhe domina
lentamente. Mas, ele consegue ouvir as últimas palavras da enfermeira para os
dois homens, enquanto ela se retirava do quarto. - Este maluco assassinou toda
sua família. Mulher e três filhos. Foi algo brutal. Arrancou-lhes os olhos
enquanto ainda vivos e depois os enforcou... Diego despertara com o corpo todo
suado. - Que pesadelo estranho. – Ele pensou. Sentiu todos os músculos de seu
corpo doloridos. Mal conseguia abrir os olhos devido ao intenso clarão do sol
matinal...
--Roberta H.